Em meados de fevereiro deste ano, se não fosse pela pandemia, hordas de brasileiros e viajantes teriam lotado festas de carnaval e desfiles no sambódromo durante cinco dias ininterruptos de música e dança. Quem está no Rio ou em São Paulo certamente já se deparou com a feijoada à base de feijão preto, o guisado carro-chefe do Brasil e uma refeição onipresente nas celebrações do carnaval do sudeste. Em Salvador, a capital baiana, os foliões provavelmente se deliciariam com o acarajé, um típico bolinho afro-baiano feito de feijão-fradinho.
“Dez em cada dez brasileiros preferem feijão”, diz a música-tema de uma novela de 1979 – não surpreendentemente, chamada Wonder Bean. Licença poética à parte, a verdade é que não há comida tão popular no Brasil quanto o feijão. Mais do que um ingrediente favorito, eles são o símbolo culinário da nossa identidade nacional.
O feijão é uma fonte de inspiração para canções e poemas; e o país registra mais de 4.000 variedades, de feijão carioca (feijão carioca; consumido em São Paulo) a feijão de corda (uma subvariedade de feijão-fradinho, comum no estado do Ceará) ao feijão manteiguinha- de-santarém, que é consumido na região do Baixo Amazonas. Como afirmou o renomado antropólogo Luís da Câmara Cascudo, para os brasileiros uma refeição sem feijão é incompleta.
Mas, longe de ser um fenômeno arbitrário, o poder simbólico investido em uma leguminosa comum (cujas vagens fornecem as sementes que comemos) também conta a história da turbulenta história sociopolítica do Brasil.
Antes de o Brasil se tornar independente no século 19, seus habitantes há muito se alimentavam de feijão. Embora os primeiros registros de feijão datem do século 17 (um deles no diário de viagem do explorador holandês Johan Nieuhof, que percorreu o território de 1640 a 1649), as comunidades indígenas brasileiras comiam as sementes muito antes da colonização.
Segundo o sociólogo da alimentação Carlos Dória, autor de A formação da culinária do Brasil, uma espécie nativa de feijão do Peru (Phaseolus vulgaris, conhecido como “feijão comum”) chegou ao território brasileiro do Peru há milhares de anos, arrastada pelas correntes do Rios Amazonas e Solimões.
Mas o feijão nunca foi um ingrediente chave na dieta indígena. Em vez disso, a popularização do feijão é um fenômeno pós-século 18 que está intimamente relacionado à história da colonização do interior do Brasil. Para explorar e colonizar o interior do Brasil, os colonizadores precisavam de uma leguminosa nutritiva e fácil de cultivar em todos os climas, inclusive no semi-árido. Essa leguminosa era feijão.
Junto com suas ambições expansionistas, os colonizadores portugueses e seus descendentes trouxeram consigo uma tradição ibérica de comer feijão, bem como espécies de feijão do Mediterrâneo e suas colônias africanas, incluindo o feijão-fradinho da África Ocidental, região com clima semelhante a Do Brasil.
Uma das mais famosas receitas à base de feijão, feijão tropeiro (feijão tropeiro; uma combinação de carne seca, feijão vermelho e farinha de mandioca) refere-se aos históricos “soldados” do Brasil – os homens encarregados de abrir estradas e levar os bens tão necessários, do tecido ao sal e ao sabão, para o interior – principalmente durante os séculos XVII e XIX.
Típico nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás, o feijão trooper reflete a solução não perecível necessária para longas expedições terrestres; o que Dória chama de cultura da “culinária seca”, onde os pratos de feijão-seco faziam com que as tropas não precisassem cozinhar com tanta frequência. “As tropas não conseguiam acender o fogo e aquecer a comida em momento algum. Então, eles encontraram uma maneira de misturar as coisas”, disse ele.
Nutritivo, barato e fácil de cultivar, o feijão ajudou a combater a fome em um Brasil historicamente composto por pobres e escravos. Combinado com a mandioca e, desde o final do século 19, com o arroz, o feijão representou o mínimo para manter os brasileiros vivendo o dia. “Pobre era quem nem tinha feijoeiro em casa”, disse Dória.
Como ingrediente há muito associado à subsistência de pessoas de baixa renda, o feijão estabeleceu uma clara divisão de classes no Brasil. Até a década de 1920, as elites, um grupo que incluía grandes proprietários de terras, banqueiros e industriais, se recusava a comer feijão na tentativa de se diferenciar do resto da nação. Embora o consumo de feijão continue prevalecendo entre os mais pobres atualmente (prato feito, uma combinação básica de arroz, feijão e carne continua a ser a opção de refeição mais barata nas cidades brasileiras), esse estigma de classe mudou depois que o projeto nacionalista-modernista do país se consolidou um século atrás.
De 1922 a 1945, intelectuais e artistas perceberam que, em vez de se espelhar na França (antes considerada um modelo civilizacional), o Brasil precisava se definir a partir de uma perspectiva local. Na busca pela construção de uma identidade nacional, antropólogos e sociólogos construíram uma narrativa em torno de elementos que refletiam a essência de ser brasileiro. A dieta à base de feijão era um desses elementos.
“Os modernistas tiveram que encontrar um elemento de alteridade, que distinguisse o Brasil em relação a todas as outras nações”, disse Adriana Salay Leme, que escreveu sua dissertação de mestrado sobre Feijão, donos de tradições: representação da identidade e consumo efetivo no Brasil (1973-2009 ) “O feijão representou esse marcador de identidade porque, na época do modernismo, nenhuma outra nacionalidade tinha uma cultura alimentar tão influenciada pelo consumo do feijão como a brasileira.”
Hoje, quem viaja para o Brasil certamente vai encontrar feijoada (caldeirada de feijão preto e porco) acompanhada de arroz, farofa (farinha de mandioca torrada), laranja e couve. Geralmente preparada aos sábados e acompanhada da caipirinha, a bebida carro-chefe do Brasil, a feijoada está sempre presente em eventos de samba, jogos de futebol e até em dias religiosos como o de São Jorge, padroeiro do Rio de Janeiro. Não é à toa que é considerado o mais brasileiro de todos os pratos.
Mas o prato não ocupa um lugar especial na cultura local apenas pelos seus sabores. A sua imensa popularidade surgiu devido aos modernistas promoverem a placa como a síntese definitiva das tradições portuguesas, indígenas e afro-diaspóricas. “O porco representaria a culinária portuguesa; a farinha de mandioca representaria a cultura alimentar indígena; o feijão preto representaria a cor dos africanos”, explicou Dória.
A narrativa que embasou a fama da feijoada, no entanto, também foi alvo de críticas: ao reivindicar uma nação etnicamente unificada, ela negligencia as tensões sociopolíticas que moldaram a história do Brasil. “O discurso da feijoada visa mitigar conflitos sociais, como a escravidão e as desigualdades de classe, em nome de um Brasil feliz e miscigenado”, disse Leme. “Este discurso visa apagar diferenças, silenciar tensões e unificar o país para uma mesma identidade nacional. A consequência desse discurso é que não abordamos realmente os problemas sociais”.
Dória concorda. Quando a feijoada se apresenta como a contribuição culinária de índios, negros e brancos, ela “esquece [que] uns foram dizimados, outros foram escravos, e estes, cruéis dominadores”, disse.
A narrativa romantizada da feijoada também gerou equívocos. A maioria das pessoas ainda acredita na narrativa que foi vendida pela elite intelectual em meados do século 20: que o prato foi inventado por escravos afro-brasileiros que supostamente improvisavam na escassez adicionando sobras de porco ao feijão preto. Porém, segundo Câmara Cascudo, que publicou a antológica História da Alimentação no Brasil (1967), a feijoada, como a conhecemos, foi vista pela primeira vez nos restaurantes, pensões e hotéis do Rio de Janeiro do século XIX.
Hoje, a feijoada ainda reina no Rio, principalmente em eventos culturais populares como as rodas de samba, onde as festas de fim de semana em santuários como Cacique de Ramos, Casa do Jongo da Serrinha e Renascença Clube costumam ser alimentadas por um generoso caldeirão de feijoada, com porções individuais normalmente custam entre R $ 15 e R $ 30.
Como prato compartilhado, a feijoada é vista como um prato social – assim como a experiência do samba, em que as pessoas cantam, tocam e dançam olhando-se em uma única roda. Por isso feijoada e samba vão tão bem, segundo Dória. “É servido em fartura, aludindo a uma tradição gregária presente nas culturas portuguesa, indígena e africana que moldaram a sociedade brasileira. A feijoada, assim como as festas de samba, inspira comunhão”, disse.
O feijão também é de vital importância nas religiões afro-brasileiras. Nos rituais do Candomblé (a religião afro-brasileira mais difundida no país), o feijão é a base de muitos pratos oferecidos simbolicamente nos rituais sagrados dos orixás (deuses e deusas). Embora a feijoada esteja presente em alguns ritos, a maioria das receitas à base de feijão dessa religião, como o acarajé e o abará (outro tipo de bolinho), incluem feijão-fradinho e óleo de palma – herança de algumas culturas africanas que vieram escravizadas ao Brasil. Fonte: BBC