Há evidências que a academia perde espaço na pesquisa sobre IA para as big techs e o mundo corporativo
É inegável que o tema Inteligência Artificial se tornou central no debate acadêmico. Uma busca rápida no site do Jornal da USP traz centenas de resultados de publicações do último ano. Somos, dessa forma, induzidos a pensar que as universidade de ponta, categoria na qual a USP se inclui, mantêm o protagonismo e a vanguarda na pesquisa também nessa área. Os dados, porém, não são assim tão promissores. Ao contrário, há evidências que a academia perde espaço na pesquisa sobre IA para as big techs e o mundo corporativo.
Essa questão ganha relevância à luz da trajetória de figuras influentes como Geoffrey Hinton, que transitou da academia para uma carreira próspera no setor privado. Em março de 2021, a revista Wired trouxe uma reportagem mostrando como Hinton, proeminente pesquisador sobre redes neurais artificiais e deep learning da Universidade de Toronto, vendeu uma startup, fruto de suas pesquisas, num leilão disputadíssimo entre gigantes como Microsoft, Baidu e outras empresas.
A Google arrematou por 44 milhões de dólares a promessa incipiente do que viria a resultar nos atuais modelos de linguagem de larga escala como o ChatGPT.
À medida que a IA se estabelece como uma das tecnologias mais impactantes de nosso tempo, surge uma indagação crucial. Ou seja: será que a academia ainda pode manter sua posição de liderança no desenvolvimento e pesquisa em IA, em comparação com as empresas privadas na sociedade contemporânea? Recursos importam. Sem financiamento, infraestrutura e talento adequados, a pesquisa acadêmica em IA corre o risco de ficar para trás.
Pesquisa corporativa em IA costuma priorizar aplicações imediatas em detrimento da compreensão fundamental
Contudo, empresas com recursos financeiros, plataformas expansivas e acesso aos principais talentos estão modelando a narrativa da IA. As implicações são duplas: um comprometimento potencial na qualidade da pesquisa e uma dinâmica de poder que favorecerá ao setor corporativo. A IA tem sede de dados, e as corporações possuem vastos reservatórios deles, coletados a partir da atividade dos usuários e operações internas.
As universidades, por outro lado, enfrentam obstáculos na aquisição de conjuntos de dados semelhantes. Esse desequilíbrio restringe a pesquisa acadêmica, limitando o escopo e a profundidade de suas investigações em comparação com seus pares corporativos, ricos nesta matéria-prima.
Há que se considerar ainda o silenciamento do dissenso. A abertura e a crítica são pilares do discurso acadêmico, mas a pesquisa privada pode ser envolta em sigilo. À medida que as corporações controlam mais pesquisas em IA, surgem preocupações sobre um efeito inibidor na análise crítica e no debate. No entanto, sem o holofote acadêmico, iluminando possíveis armadilhas e dilemas éticos, o desenvolvimento irrestrito da IA pode apresentar riscos imprevistos. Ou mesmo calculados a partir de um raciocínio deletério ao bem comum.
Movida exclusivamente pelo lucro, a pesquisa corporativa em IA costuma priorizar aplicações imediatas em detrimento da compreensão fundamental. Isso leva a avanços em áreas específicas, como algoritmos de marketing ou reconhecimento facial, mas negligencia questões teóricas mais amplas sobre a natureza da inteligência e suas implicações éticas. As universidades, com seu foco em pesquisa de longo prazo e investigação crítica, podem equilibrar essa abordagem míope e garantir uma compreensão mais holística da IA.
Artigo Jornal da USP, por Felipe Hoenen, pesquisador de Audiovisual e Novas Tecnologias, e Ferdinando Martins, professor da universidade de Comunicações e Artes da USP