“Um bom copo de Jerez é de duplo efeito. Sobe-me ao cérebro, seca-me ali todos os vapores tontos, obtusos e ásperos que o envolvem. Deixando-o sagaz, vivo, imaginoso, cheio de formas leves, petulantes e deleitosas, que, entregues à voz. Recebem vida da língua e se convertem em excelente espírito. A segunda propriedade do vosso excelente Jerez é a de aquecer o sangue. Por ser naturalmente frio e pesado, deixa o fígado branco e pálido. Sinal certo de pusilanimidade e covardia. Mas o Jerez o aquece e o faz correr do interior para as partes extremas. Ilumina o rosto, que, como farol que é, chama às armas a esse pequenino reino denominado homem.”
O vinho, por sinal, é o veículo para a vingança de Iago contra Otelo
Porém, pouco antes dessa exaltação ao Jerez, o mesmo Falstaff reclama de outro personagem ao justificar por que nenhum homem é capaz de fazê-lo sorrir. “Pudera, ele não bebe vinho”, diz.
O vinho, por sinal, é o veículo para a vingança de Iago contra Otelo, em uma das obras mais conhecidas de Shakespeare. Nela, Iago embebeda Cássio, que havia sido promovido ao posto de tenente (almejado pelo primeiro). E fazendo com que ele brigue em uma festa e perca, assim, sua promoção. “Ó espírito invisível do vinho! Se não és ainda conhecido por nenhum nome, recebe o de demônio”, proclama Cássio, sem lembrar do que havia feito.
Canárias e Madeira
O vinho mais popular na época de Shakespeare definitivamente era o Jerez. Mas o dramaturgo cita ainda o vinho das Ilhas Canárias em duas obras: “Noite de Reis” e “As Alegres Comadres de Windsor”. Nesta última, novamente é Falstaff o personagem que irá apreciar o vinho do arquipélago espanhol na costa na África. Acredita-se que o vinho produzido no local era um branco doce, muito similar ao Malmsey. O dramaturgo chega a exaltar, contudo, o vinho das Canárias: “Um vinho maravilhoso e penetrante. Perfuma o sangue, fazendo com que se pergunte: ‘O que é isso?’”.
Entretanto, por volta de 1640, mercadores de vinho ingleses chegavam a classificar a bebida das ilhas como “o vinho luxuoso de Tenerife”. Ele era mais doce do que o Jerez e feito com Malmsey (Malvasia). No entanto, um vinho conhecido como Vidonia (outro nome para a variedade Verdelho) era relativamente seco, tivesse acidez elevada e envelhecesse bem.
O Malmsey também está presente nas obras de Shakespeare
Da mesma forma, o Malmsey também está presente nas obras de Shakespeare, como “Trabalhos de Amores Perdidos”, “Ricardo III” e “Henrique IV”. Uma passagem curiosa ocorre em Ricardo III, quando os homens contratados para assassinar o Duque de Clarence propõem ocultar seu cadáver em um barril de Malmsey. Pouco antes de morrer, porém, o inadvertido personagem solicita uma taça de vinho, ouvindo dos assassinos a pronta resposta: “Você terá vinho suficiente, Sir”.
Na Ilha da Madeira, não muito distante das Canárias, as pipas de Malmsey geralmente ficavam ao ar livre. E o vinho oxidava, tomando uma cor marrom. Mas a temperatura elevada acabava por lhe dar um bom sabor. Acredita-se, porém, que os primeiros vinhos ditos Malmsey que chegaram à Inglaterra, na verdade, tenham vindo da Grécia ainda na época medieval.
Enfim, por mais falso que o traidor Iago tenha sido, ao dizer sua célebre frase, Shakespeare resume aqui um pouco da relação da humanidade com o vinho. “Vamos, vamos; o bom vinho é um camarada bondoso e de confiança, quando tomado com sabedoria, não continueis a falar mal dele”.